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segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Medicina e Humanismo

José Márcio Soares Leite*

Em recente trabalho de autoria do Dr. Dante Marcello Claramonte Galian, Diretor do Centro de História e Ciências da Saúde da Universidade de São Paulo-UNIFESP, sob o título a (Re)humanização da Medicina, este nos diz que “em sua origem a Medicina Ocidental era uma ciência essencialmente humanística” para prosseguindo citar Werner Jaeger em sua obra Paidéia.A Formação do Homem Grego ( 1995, p. 1001) – “de todas as ciências humanas então conhecidas, incluindo a Matemática e a Física, é a Medicina a mais afim da ciência ética de Sócrates”. Finalmente conclui “que esse humanismo da medicina desapareceu no século XX, pois ocorreram muitos progressos científicos nas ciências físicas, químicas e biológicas, aliados ao desenvolvimento tecnológico, e estes foram, cada vez mais, redirecionando a formação e a atuação do médico, modificando também sua escala de valores, pois à medida que o prestígio das ciências experimentais foi crescendo, o das ciências humanas esvanecia-se no meio médico. A medicina deixava de se apoiar nas ciências humanas para se sustentar, essencialmente, nas ciências exatas e biológicas” .

Em síntese, pelo que se depreende da leitura desse trabalho, o médico do século XIX, mais que um biólogo, mais que um naturalista, era fundamentalmente um humanista. Um sábio que na formulação de seu diagnóstico, levava em conta não apenas os dados biológicos, mas também os ambientais, culturais, sociológicos, familiares, psicológicos e espirituais. Era, portanto, antes de tudo um filósofo, um conhecedor das leis da natureza e da alma humana, ou seja, conhecedor dos avanços científicos de sua época no campo da clínica, da cirurgia, da patologia, da farmacologia, mas também um amante da literatura, da filosofia e da história.

É óbvio que, desde as sua origens, a medicina se fundamentou no estudo dos componentes biológicos do corpo para construir suas teorias, elaborar seus diagnósticos e determinar seus tratamentos, entretanto nunca em sua história como a partir desse período que se inicia ainda no século XIX e se estende até nossos dias, essa fundamentação chegou a ser tão absoluta e dogmática.

As descobertas ainda mais surpreendentes que ocorreram nas últimas décadas, principalmente, no âmbito da biologia celular e molecular, que ultimamente têm culminado nas pesquisas do genoma, parecem ter definitivamente confirmado a idéia de que a chave de todo o conhecimento médico está nas ciências experimentais.

Anuncia-se para dentro em breve o descobrimento das verdadeiras causas de todas ou pelo menos quase todas as doenças que flagelam a humanidade. E, desta forma, através de manipulações em nível genético, assim como por meio de precisos e eficazes tratamentos preventivos, poder-se-á prever, reverter e principalmente prevenir grande parte das doenças que nos espreitam, como o câncer, as deficiências imunológicas ou os distúrbios cardiovasculares.

A leitura do texto do Professor Galian, nos remete, de forma reflexiva, ao que nos deixou dito sobre humanismo e ciência o médico, professor, cientista e humanista Dr. Bacelar Portela, no seu discurso de posse na Academia Maranhense de Letras em 1950_ “Ensinaram-me que a vida era um simples jogo de fenômenos mecânicos e físico-químicos, de trocas entre o organismo e o meio. Assim, era incapaz de enriquecer de aquisições úteis, de nutrir os valores reais da pessoa humana; era incapaz de orientar o homem no sentido de dizer se a matéria devia ser olhada pelo prisma do espírito ou o espírito pelo prisma da matéria. Ensinaram-me, enfim, que era matéria e que era energia; que era massa, força viva e inércia; que era gravitação e campo magnético; que a ciência estava apta a saturar todos os valores e anseios do espírito humano, e que a filosofia se tinha reduzido a uma simples teoria do conhecimento, análise interior aos dados de experimentação. Não me disseram, porém, que a ciência, marchando para um pluralismo desnorteador e desintegrante, debatendo-se entre os conceitos de analogia e diferença, simultaneidade e seqüência, reversibilidade e irreversibilidade, simetria e assimetria, isotropismo e anisotropismo, quase esgotada na sua capacidade de conceituação, dividida entre as doutrinas da continuidade e descontinuidade do universo, não poderia subsistir sem a Filosofia” e o biólogo americano Francis Collins, um dos cientistas mais notáveis da atualidade. Diretor do Projeto Genoma e um dos responsáveis por um feito espetacular da ciência moderna: o mapeamento do DNA humano, no seu livro, recentemente lançado nos Estados Unidos The Language of God (A Linguagem de Deus), para quem “é possível aceitar as teorias de Darwin e ao mesmo tempo manter a fé religiosa”.

             A leitura do texto nos leva também a suscitar uma questão extremamente dialética:

            Será possível o médico atual, que exerce sua profissão apoiado no tecnicismo e mecanicismo da medicina dita científica, de equipamentos de ponta ou “armada”. Que utiliza como apoio diagnóstico a imunohistoquímica e nas suas pesquisas a imunogenética, que precisa para sobreviver andar num corre corre de serviço a serviço de saúde, todos com baixa remuneração, exercer essa prática médica de forma humano-científica como no século XIX ? Certamente que não.

 Nesse contexto, as Universidades, os Gestores da Saúde, as Academias de Medicina, os cientistas da saúde, os historiadores, os filósofos, os antropólogos, os psicólogos, os literatos, os pedagogos, professores e alunos de escolas médicas, precisam perceber que as ciências humanas têm muito a contribuir para o desenvolvimento das ciências da saúde e da medicina e que nunca como hoje se fez tão necessário uma reflexão histórico-filosófica para que se possa (re)humanizar a medicina e as ciências da saúde em geral.





* Médico. Membro da Soc. Maranhense de História da Medicina.

3 comentários:

  1. Dr. José Márcio, muito oportuno o seu artigo. Parabéns!Estamos precisando muito. Afinal o médico é o último recurso nesta terra a quem o paciente recorre e nem sempre recebe a devida atenção.

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  2. Gostei do artigo. Muito bom!

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  3. Dr. José Márcio Leite você compõe a organização e a construção de nossa História da Medicina no Estado do Maranhão.

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